terça-feira, 3 de agosto de 2010

A fé que move cadeiras

O dia começa cedo. Sete horas ela já está acordada, enrolada em seu roupão predileto, direto pra cozinha porque o café chama. O marido vai trabalhar e os filhos vão pra escola. A casa foi reformada, os batentes são mais largos agora, “gordos” nas palavras de Fátima Castro.

Às nove horas sua jornada inicia. Estaciona cuidadosamente entre o abajur e a mesinha de canto, a vaga é justa. Sob o móvel está aquilo que não a fez desistir de sua grande missão de passar os ensinamentos Dele. O telefone surrado, de uma tonalidade amarelada judiada pelo tempo, é seu melhor amigo, sua mais direta comunicação com os que precisam de um conselho. Depois do brutal acidente, naquele dia chuvoso de outubro de 98, a embriaguez de um jovem arrancou-lhe os movimentos das pernas, obrigando à eterna dependência da cadeira de rodas. Seu nome é Fátima, uma homenagem da mãe à santa que, também em imagem, ilumina um dos cantos da sala. A fé aquece o resto.

No pequeno móvel também estão fotos de Fátima em momentos familiares anteriores ao acidente. Ela flerta com as lembranças. Em seu colo, quase como um bebê, a lista telefônica e a Bíblia repousam aguardando a iniciativa da mulher de 54 anos. As folhas amarelas então se abrem, a página se escolhe, o dedo liso arrasta pelos tantos nomes e para. O telefone sai do gancho, as teclas pressionadas determinam a direção e duuuuu, duuuuuu, duuuuuuu... a ansiedade contrai o corpo e comprime a pequena sala. “É o mesmo nervosismo de quando vamos conhecer alguma pessoa pela primeira vez”, explica.

Todos os dias, logo depois do café, seu marido traz os jornais da cidade e da região para ela. “Quero saber de tudo que acontece mesmo que eu não possa ver”, conta. Às quintas-feiras é o dia dos telefonemas, assim como era o dia da caminhada das carolas.

Quando mudou para Indaiatuba, em 1995, Fátima frequentou uma igreja católica e logo integrou o grupo de senhoras que, toda semana, saiam pela cidade batendo nas portas para contar um pouquinho da história de Deus. “Parecíamos um grupo de meninas, todas animadas com as Bíblias debaixo do braço”, relembra com os olhos molhados. Das oito, apenas ela tinha um jeito diferenciado de conquistar quem atendia a porta. As conversas que mais duravam eram as dela. “É chato só escutar alguém falar, o melhor é a conversa. Eu escolhia um trecho que dava pra contar sobre Deus e tinha a ver com o que saia nos jornais”.

Duuuuuuu, duuuu... “Alô?”, escutou ela e, ao mesmo tempo, o coração desafogou da tensão de segundos atrás. “Olá, bom dia. Tudo bem com a senhora?... Que bom! Será que a senhora teria um minutinho para conversar comigo?... Garanto que fará bem tanto pra senhora como para mim”, começava sempre assim suas ligações. A pequena senhora, de corpo curvilíneo, altura média sem a exatidão dos centímetros, cabelos pintados de chocolate e sorriso largo relaxava em sua cadeira companheira. Seu único interesse era que as pessoas conhecessem melhor o mundo, sua história, seu Criador e o Salvador. Não era importante seu nome ou o do outro alguém, o encontro era apenas telefônico.

“Às vezes fico mais de meia hora no telefone só conversando sobre o mundo dentro daquele versículo e, quando digo tchau que me dou conta que nem sei quem é a pessoa que estou conversando”, conta. “O anônimo dá mais segurança pra falar”.

São poucas e raras as vezes que sua Bíblia saía do colo, no aconchego da manta que cobre suas pernas. O remorço ainda cerca seus olhos com uma leve olheira das vezes que chora por não poder mais andar. Queria ela estar preparando os bilhetes que o grupo de carolas imprimia e deixava nas lojas por onde passavam. Sua devoção à igreja e, principalmente, a Deus é que a mantiveram forte para continuar nessa estrada.

Desde pequena frequentava as missas junto da mãe. Foi batizada, catequizada, foi coroinha, passou pela primeira comunhão, ajudou em quermesses e festas de paróquia de várias igrejas. A caminhada das carolas era sua maior paixão, sentia estar fazendo o bem para o próximo toda vez que alguém aceitava conversar com ela. Quando o sol ameaçava se pôr na quinta-feira, Fátima já torcia para a semana correr. Era ela a capitã desta equipe, ela que escolhia os bairros, marcava as datas, combinava e organizava. Não tinha um frequentador da igreja que não conhecesse a Fátima das carolas.

O acidente enterrou sua fama. A primeira vez que voltou para casa empurrada em sua cadeira de rodas, Fátima chorou, xingou, odiou e se revoltou indignada por ter sido ela e não o motorista embriagado. Naquela noite, Deus foi duvidado.

A resposta veio com a visita do padre que a recarregou de fé. Ainda assim, sua vida precisava de luz e, foi quando teve a ideia dos telefonemas religiosos. O pequeno caderno telefônico ao lado do telefone teve sua primeira anotação três dias depois de sua decisão. Desde lá, Fátima já tem três outros caderninhos empilhados ao seu dispor.

Mesmo não andando com as carolas, Fátima segue nessa jornada que, semanalmente, ela registra em seus cadernos as conquistas dos novos amigos. Essa semana foram onze diferentes telefones que receberam aquela voz doce, leve e recheada de fé e gratidão. Às vezes um desiste, mas logo outro ocupa esse lugar.

“O que a senhora acha de conversarmos sobre isso mais vezes?... Que bom! Então, será que eu posso deixar um salmo pra senhora ler e conversarmos mais na semana que vem?... Salmo 82:19... Até semana que vem então e fique com Deus!”, finaliza a última ligação do dia, quase quatro horas da tarde. O telefone toca o gancho, Fátima sorri e olha para sua santinha que a ilumina do canto da sala. Como se a imagem conversasse, as Fátimas concordam com a boa fé da ação e a resposta vem com um suspiro folgado e a leve anotação de um coração na folha de papel que dizia: tarefas de hoje.

1 comentários:

by mghorta disse...

Por vezes, podemos ler e passar ao lado de muitos exemplos, mas este mostra quão precioso foi a educação desta senhora enquanto jovem, e a sua fé a mantêm fiel a si própria, e com o propósito de ajudar outros.
Parabéns pelo trecho de uma vida de fé.
Coragem Fátima.

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