sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Escondida nas ideias

Chegou ofegante e trêmula. Passou o portão, buscou a chave velha no bolso da calça surrada e suja de barro na altura dos joelhos. Parou por dois segundos. Respirou fundo e abriu a porta. Seguiu em direção à cozinha para cumprimentar sua mãe que ritmadamente acariciava o feijão com a colher de pau. A televisão cochichava no canto da cozinha. Beijou o rosto e recebeu de volta o esperado, a pergunta sobre suas calças sujas. A reação ensaiada foi de espanto seguida da lembrança da queda perto do parquinho na praça. A desconfiança passou longe dos olhos de sua mãe, que instantemente sorriram pra ela e mandaram a calça ficar perto do tanque. As ideias formigavam em sua mente e induziam o sorriso torto do canto da boca. Subiu a escada pulando os degraus e se acolheu em seu quarto que ficava no fim do corredor.

Queria poder pegar uma das várias engenhosas e indefinidas ideias que borbulhavam em sua cabeça, queria fazer um plano funcionar. Tinha visto isso num filme, porque não poderia dar certo mesmo que um pouco diferente? Rabiscou, riscou, desenhou e as palavras continuavam proibidas de construir.

Olhou para os lados em busca de algo que nem sabia o que seria, um sinal, uma ajuda, outra ideia. O quarto estava amarelo pela pintura do sol do meio dia. Fechou os olhos, inclinou a cabeça, o cabelo castanho despencou do coque. Sentiu uma leve brisa caminhando da janela e respirou fundo. Ergueu os braços e penteou os cabelos longos com os dedos....acariciou a nuca. Sorriu. A adrenalina tinha acalentado. Agora o raciocínio já se manifestava com autoridade.

Trocou de roupa. Jogou a calça suja perto da porta. A companheira e velha mochila se encaixava no vão entre a cama e a escrivaninha. Lá estavam suas coisas, suas ferramentas, suas ideias em prática. Aquela mochila carregava o que era preciso para concretizar o imaginário que cercava seus pensamentos.

O cheiro do almoço bateu na porta e ela desceu as escadas. Largou a calça perto do tanque e voltou à mesa. O dia a dia já estava ali, arroz, feijão, alface, tomate, beterraba ralada, bife acebolado. Carinhosamente a mãe ajeitou o colorido nos pratos, serviu o suco e preparou a primeira garfada. A garota sentiu que era hora de puxar assunto mas não sabia como, então a mãe aumentou o volume da televisão.

A apresentadora contou das obras no centro da cidade e, logo em seguida, relembrou o espectador da manifestação popular que naquele dia estava no centro. As imagens de pessoas como mastros balançando suas bandeiras, faixas e ideais eram comuns, clichês. Elas estavam sujas também....

A tensão cresceu dentro da garota que observava espreitamente a mãe se alimentar. A desconfiança da desconfiança alheia tornava o feijão salgado. Tratou de engolir a comida, queria parar de ouvir aquela mulher de terninho que só sabia repetir a palavra protesto. Sua mãe não aceitaria, mas ela não tinha prestado atenção, como tantas outras pessoas que vêm a televisão sem querer entender. A mãe virou o rosto e um sorriso leve aliviou a tensão exposta no prato. Ufa. Seguimos com o plano.